Era um dia como outro qualquer, nada fazia prever que fosse diferente do anterior e adivinhava-se igual ao que se lhe sucederia. Não fosse o estar aqui, sentado, nas duas pedras que formam esta ponte, com as pernas pendentes sobre o rio num esforço vão de tocar a água que por ele corre, e teria sido mais um dia banal. Mas a partir desse dia, todos os dias seriam diferentes, pois aquele local emanava uma energia que desconheço, como se me impelisse para um outro tempo, como se fosse vontade divina levar-me numa viagem pelas memórias deste lugar. Assim deixei-me embriagar pelos cheiros e pelas cores da natureza e embalar pela melodia das águas límpidas do rio Guisande, e com um breve serrar dos olhos deixo-me imaginar como seria este caminho á muitos anos atrás, quando era percorrido pelos nossos antepassados, que, ora debaixo do sol tórrido, ora em tempos de gélida névoa, mergulhavam as suas mãos nesta terra procurando colher o seu sustento. Tempos duros em que se partilhava a labuta com os animais. Juntas de bois que obedientemente puxavam arados e rasgavam os solos onde manualmente se ofereciam sementes á terra na esperança de que ela retribuísse com frutos o suor que sobre ela fora derramado. Mesmo no dia estipulado para descanso pelo Senhor, este caminho, chamado de Lamela, não carecia de movimentação, pois era o caminho mais próximo para a igreja, que lá no alto parece abençoar estas gentes. As pessoas que o percorrem, são as mesmas que por aqui trabalham durante os restantes dias da semana, só que nesse dia, apesar de não conseguirem apagar as rugas dos seus rostos nem a aspereza das suas mãos provocadas pelo rigor das suas vidas, surgem com as suas melhores vestes, trajes domingueiros, usados apenas em dias de ir á igreja ou em dias de festa, muitas vezes comprados a prestações ou á troca de trabalho. As senhoras exibem orgulhosamente ao pescoço os seus cordões de ouro e os brincos que vão rasgando as orelhas devido ao seu peso. Bens que para alem do seu valor material constituíam uma riqueza emocional pois iam passando de geração em geração. Neste dia reina no campo a tranquilidade, apenas alguns pássaros debicam a terra procurando algumas sementes que ficaram á superfície.
Este caminho que serpenteia por entre campos, e nos transporta por momentos de paz e tranquilidade, sob a sombra das ramadas, e delimitado por paredes de granito, permanece em terra batida até um troço invulgar, empedrado em granito, de uma forma muito pouco vista ou mesmo única neste concelho que nos conduz até uma pequena ponte sobre o rio Guisande, construída apenas com duas pedras. Para além da ponte, um pequeno trilho, com pedras que o tempo fez desabar, leva-nos até uma visão secular. O cruzeiro da Quinta. Este cruzeiro de características únicas foi construído em 1568 junto a uma estrada que serviria de ligação entre Vila do Conde e Braga. As poucas pedras que pavimentam esta estrada encontram-se polidas por séculos e séculos de carros de bois que as percorriam, com as suas rodas rangendo sob o esforço a que eram sujeitas nas suas longas viagens transportando bens para serem comercializados nas feiras da região. Ocasionalmente apareciam dobrando a curva, grupos de peregrinos que se deslocavam em peregrinação para S. Tiago de Compostela e que ao aproximarem-se do cruzeiro que lhes servia de farol, entoavam rezas e faziam vénias dando graças e pedindo forças para continuarem a sua caminhada. Este caminho de S. Tiago á muito tempo esquecido, atravessava a freguesia e seguia por Braga em direcção a S. Bento da porta Aberta e dali para S. Tiago de Compostela.